Crítica: Black Mirror segue ótima, mas ignora suas origens

Black Mirror entrega uma temporada sólida, com bons episódios. Série, entretanto, se afasta de suas raízes, sendo algo novo.

Black Mirror

Para poder continuar, Black Mirror teve que se afastar de Black Mirror. Charlie Brooker, criador e roteirista da maioria dos episódios, já alegou que a série perdera o impacto, pois o mundo estava muito insano para ser superado.

Assim, depois de um longo hiato, a série retorna à Netflix com 5 episódios. E eles estão mais ligados ao absurdo e à fantasia do que ao realismo e ao sci-fi paranoico estabelecido em temporadas passadas.

Essa aproximação a temas e situações absurdas – ou megalomaníacas – se dá em parte para superar uma realidade cada vez mais doida e para renovar o estoque de personagens e histórias. Afinal, Black Mirror já cobriu muito terreno, apesar das temporadas curtas que lançou nos últimos anos.

Ainda assim, é interessante perceber que Brooker e a série ainda têm a sensibilidade de encontrar assuntos pertinentes para destrinchar.

Só o absurdo para vencer um mundo absurdo

E, na 6ª temporada, mais do que em qualquer outra, Black Mirror está metalinguística. Depois de brincar com tecnologia, jogos, comportamentos estranhos, política e muito mais, o programa parece interessado na feitura e na distribuição dos conteúdos audiovisuais contemporâneos.

Dos cinco episódios, pelo menos dois fazem comentários claros sobre a produção e divulgação de produtos de Cinema ou TV. Os outros três, embora talvez não assumam diretamente as análises, aventam, aqui e ali, um olhar metalinguístico.

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É uma tentativa clara de Brooker entender o próprio ofício – e como sobreviver e se renovar em um cenário superlotado. Não é à toa que a maioria das histórias lida com a falta de privacidade e a perda de identidade/personalidade. São problemáticas cada vez mais latentes na cultura e na sociedade atual, e que foram catalisadas pelo “produto a um clique de distância”.

Se as séries do streaming parecem escritas por algoritmos, é porque eles sabem exatamente o que você fala, pensa e gosta.

Joan is Awful

Em “Joan is Awful”, Brooker já estabelece dois dos grandes temas da temporada: a perda total de privacidade e identidade. Na trama, Joan é uma mulher que tem a vida inteira representada em uma série de TV. Todos os dias os seus passos são colocados no programa, causando grandes problemas com seus amigos, colegas e familiares.

A série brinca com os “termos de compromisso” de empresas como Netflix, mas sabemos que o buraco é mais embaixo.

O segredo de “Joan is Awful” está na fala de uma personagem que afirma que o público “engaja” mais quando o assunto é negativo. Assim, ninguém assiste a uma série porque o personagem é excelente. As pessoas geralmente assistem pois os personagens são falhos e, muitas vezes, reprováveis.

No geral, tal mensagem – e as demais propostas pelo episódio – são simples e, muitas vezes, pouco originais. Mas antes que a história acabe, Black Mirror dá uma guinada.

E a surpresa da história, inesperada ou não, eleva o episódio. Neste momento, Brooker aumenta as apostas na metalinguagem, e traz um importante debate acerca da identidade e valor dos atores e criadores de conteúdo na indústria.

O plot twist, aliás, faz algo corajoso, pois joga a série em seu primeiro “absurdo”. Ao revelar onde se passa, “Joan is Awful” mostra que Black Mirror já não tem mais barreiras, e a fantasia permite passeios mais arriscados.

Loch Henry

Loch Henry” é um dos episódios mais socialmente relevantes desta temporada. Ainda que não discuta privacidade/identidade de forma tão escancarada como outros capítulos, a história aborda as nossa relações com os produtos que consumimos.

Neste caso em específico, o true crime vira fonte de válidas indagações. Afinal, o quão normais a indústria e o público são ao comprar cada vez mais histórias reais sobre crimes e seus perpetradores?

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Aqui, novamente, Black Mirror critica e debocha da própria Netflix, que lucra milhões anuais através da tragédia e da dor alheia. Em “Loch Henry”, Black Mirror explora outra tendência desta temporada: a de não ser tão “Black Mirror“.

O episódio, por exemplo, assim como outros desta temporada, poderiam fazer parte de outras antologias, já que não parecem tão ligados aos temas típicos do programa. Assim, “Loch Henry” não lida com tecnologias, mas aborda as bizarrices de quem vende e de quem compra a violência.

Beyond the Sea

Beyond the Sea” é mais um episódio que poderia fazer parte de outra antologia, e não de Black Mirror. Com ares de Além da Imaginação, a história protagonizada por Aaron Paul e Josh Hartnett reforça um dos temas principais da temporada. A perda de identidade fica evidente na trama dos astronautas que, isolados no espaço, dividem o mesmo corpo na Terra.

Aqui, Brooker e sua equipe flertam novamente com as barreiras do tempo e do espaço. Se antes Black Mirror tentava fincar os pés na atualidade e no nosso mundo, agora ela brinca com épocas e ambientes diferentes.

Beyond the Sea”, por exemplo, se passa em uma década de 1960 alternativa, alternando sua história entre a Terra e uma estação espacial. Novamente, fica evidente a vontade de Brooker de se liberar das amarras: só indo para outra época e outro espaço para vencer as loucuras do mundo moderno.

Com atuação excepcional de Aaron Paul, “Beyond the Sea” pode afastar o público mais casual de Black Mirror. Afinal, o episódio é um slow burn, ou seja, uma narrativa que se desenvolve com calma, sem grandes explosões e com muito diálogo e/ou observação. Assim, leva algum tempo até a grande premissa se fazer evidente – e o conflito, enfim, começar.

É uma decisão consciente do roteiro e funciona em sua maior parte. Ainda assim, é um capítulo que poderia ser menor.

Mazey Day

Na 6ª temporada, Black Mirror é como uma corda. Charlie Brooker quis esticar essa corda para ver até onde poderia brincar e experimentar. E em “Mazey Day” essa corda arrebenta. Em um dos piores episódios da série, uma paparazzi é designada para tirar fotos de uma artista que, depois de uma acidente, encontra-se reclusa em uma mansão.

Aqui, o roteiro busca abordar a falta de privacidade e o desrespeito para com figuras públicas. É algo já explorado em outras temporadas – e que é um dos pilares da 6ª temporada. O problema é que Brooker estica aquela corda com força, e o episódio descamba para um horror trash completamente sem sentido.

Falta carisma ou propósito aos personagens, e o capítulo se encerra abruptamente, em uma sequência de ação pouco inspirada – e prejudicada pelos efeitos duvidosos.

Ainda assim, a cena final merece elogios, já que, ao longe, a luz que vimos pela janela pode ser tanto de uma arma como a de um flash. É um momento inspirado, mas óbvio, em um episódio que mancha o padrão da nova temporada.

Demon 79

Em um dos melhores episódios da 6ª temporada, Brooker se afasta de vez das origens de Black Mirror. Repetindo o truque de “Beyond the Sea”, o roteiro sai dos dias atuais – ou de um futuro não muito distante – e vai para o passado. No fechar de cortinas da década de 1970, “Demon 79″ é uma mistura impecável de horror e comédia, numa homenagem certeira ao Cinema da época.

Dirigido por Toby Haynes, responsável por vários episódios excelentes de séries consagradas, “Demon 79″ finca os dois pés na fantasia – e no absurdo – e traz uma jovem sendo atormentada por um demônio. Ele tem uma tarefa simples para ela: basta matar três pessoas para que o apocalipse seja evitado.

O grande barato do capítulo talvez seja justamente o seu desprendimento dos conceitos vigentes de todo o programa. Estabelecendo-se como uma diversão pura e simples, “Demon 79″ levanta discussões sem jamais ser cegado por elas.

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Antes do fim, contudo, Brooker estreita os laços entre o episódio e a mitologia da série. Em uma breve sequência, vimos que as ações vistas aqui podem ser decisivas em histórias futuras da série. É um toque esperto para o desfecho da temporada – ou mesmo da série -, além de um aceno para a política moderna.

Em resumo, a 6ª temporada de Black Mirror é sólida e é uma ótima adição ao cânone da série. Embora tenha se afastado de várias regras e costumes já estabelecidos, a nova temporada não perde a identidade e a capacidade de chocar e surpreender.

É um conjunto de histórias mais regular que o da 5ª temporada, por exemplo, e não fica muito abaixo dos tempos de ouro da série. Basta que o público faça como a série: dê alguns passos para trás e espie uma tela maior a ser pintada.

Nota: 4/5

Sobre o autor
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Matheus Pereira

Jornalista, curioso e viciado em cultura. Escreve há quase 10 anos no Mix e Six Feet Under é sua série favorita.

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