Crítica: Dracula é o primeiro acerto da Netflix em 2020

Dos mesmos criadores de Sherlock, Dracula é uma bela releitura do clássico e uma elogiável homenagem às diversas adaptações lançadas no último século.

Dos mesmos criadores de Sherlock, Dracula é releitura moderna e nostálgica de todas as versões do clássico

Dracula, ao lado de Frankenstein, lobisomens e zumbis, ocupa um vasto espaço no imaginário coletivo. Bram Stoker, quando criou seu clássico, talvez não imaginasse o alcance que seu personagem teria nas décadas vindouras. Pois o rei dos vampiros já ganhou inúmeras releituras no cinema, teatro, TV e mesmo na literatura. Do terror gótico à comédia, o bebedor de sangue já teve altos e baixos memoráveis na cultura pop.

A última incursão do monstro na TV chama-se Dracula, como no original, e reside em dois belos castelos: a BBC One e a Netflix. Produção feita em parceria pelas duas plataformas, Dracula traz o dinamarquês Claes Bang no papel principal e os criadores de Sherlock no comando do texto. Em uma mescla de adaptação fiel do livro, homenagem a produções antecessores e releitura original, o projeto acerta na modernização e nas ideias arejadas que traz ao batido conceito dos vampiros.

Regras e convenções são postas à prova em trama com a cabeça no presente

Steven Moffat e Mark Gatiss já haviam trazido Sherlock Holmes ao presente e adaptado suas investigações e peculiaridades às tecnologias do século XXI. Em Dracula, a dupla se diverte ao tentar debater e explicar alguns conceitos básicos do romance original e das lendas fortemente enraizadas acerca dos vampiros. Sem ser didática ou pesadamente explicativa, a série muitas vezes não dá respostas definitivas, mas sugere interessantes desdobramentos. O motivo para o conde temer a cruz, por exemplo, ganha contornos sociais interessantes, ao passo que o próprio ato de beber sangue torna-se não só questão de sobrevivência, mas de vícios e atualizações em um mundo feito de mudanças.

É válido, portanto, que a série pegue todas as “regras” preestabelecidas para vampiros e discuta sobre cada uma delas, mesmo que brevemente. O perecimento frente à luz do sol, o sono em terras natais, a estaca no coração, o convite para entrar. Tudo ganha, no mínimo, um comentário irreverente. É por isso, também, que a personagem de Agatha, a freira, funciona tão bem. Além de sua identidade secreta (revelada no primeiro capítulo), a personagem brilha por seu humor, irreverência e inteligência. Seu interesse em Dracula é quase obsessivo, e é empolgante vê-la conversar com o monstro de forma aberta e totalmente interessada.

Dracula faz bela homenagem às diversas adaptações lançadas no último século

Agatha, aliás, é um sinal dos tempos e da mudança, e é interessante perceber algumas atualizações feitas por Moffat e Gatiss. Neste sentido, as reviravoltas da trama são dignas de Sherlock, e algumas delas são de cair o queixo. É inevitável, portanto, que muitos fãs ranhentos batam o pé e reclamem sobre alguns aspectos. Basta realizar uma breve pesquisa sobre a série e perceber que muita gente se mostrou “decepcionada” com a produção. O motivo? As inequívocas mudanças em alguns elementos e abordagens. Dracula, por exemplo, tem claras inclinações homossexuais, ao passo que um importante personagem do cânone é, agora, uma mulher. Tudo isso funciona e é elogiável, e só não aceita quem ficou preso no tempo dentro de um caixão.

De todo modo, Dracula tem tudo para agradar diversos grupos e unificá-los. Tanto a narrativa quanto o visual prestam claras homenagens às diversas releituras lançadas no último século. Há o elemento gótico e o jogo de sombras que Coppola usou e abusou em 1992, há a irreverência e o visual monstruoso de Christopher Lee, as referências e ligações a Nosferatu (tanto o de Murnau quando o de Herzog) e muito mais. É curioso, aliás, que Nosferatu tenha sido lançado em 1922 e quase cem anos depois, em 2020, uma nova adaptação da mesma história chegue ao público com a mesma relevância e impacto.

Resultado é positivo, embora não isento de falhas: elenco é ponto forte enquanto o desfecho deixa a desejar

No elenco, Claes Bang e Dolly Wells brilham na linha de frente. Bang tempera o personagem na medida certa com ameaça e sexy appeal, ao passo que Wells quase rouba a cena com a freira esperta e jamais deixa o sarcasmo de lado. Na parte técnica, a direção de arte merece destaque ao recriar o castelo do conde como um assustador e interminável labirinto, enquanto o convento surge como um forte habitado por freiras-soldado. O mesmo vale para a fotografia, que faz um bom trabalho brincando com luzes e sombras, dando o tom exato da trama mesmo nos momentos mais escuros ou simples.

Dracula, portanto, acerta nas releitura e homenagens que presta ao longo do caminho. O roteiro aborda, em cada capítulo um importante trecho da saga do vampiro. Seja na relação entre o conde e o advogado ou na viagem de navio até a Inglaterra, Moffat e Gatiss parecem se divertir na condução de suas ideias e personagens. O resultado é positivo, embora não isento de falhas. O ritmo, às vezes, é problemático, e o desfecho pode torcer narizes. Como um todo, porém, a série é o primeiro acerto da BBC e da Netflix do ano.

Assim como o Conde Dracula, esta clássica história precisa se alimentar de tempos em tempos para que possa se atualizar e seguir em frente, evoluindo.

Sobre o autor
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Matheus Pereira

Jornalista, curioso e viciado em cultura. Escreve há quase 10 anos no Mix e Six Feet Under é sua série favorita.

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