Devemos mesmo aceitar o contraditório no final de Game of Thrones?
Nesta semana, o Editorial Mix olha para os usos da suspensão de descrença na sétima temporada de Game of Thrones e para o quanto esses usos afetam a trama.
Suspensão de descrença, uma aposta arriscada
Sim! Agora que chegamos a última temporada de Game of Thrones, parece ser a hora de passar a régua, de avaliar um pouco daquilo que vimos até aqui. E exatamente isso que não faremos hoje.
Claro, salvo a piadinha do parágrafo inicial, não faria realmente sentido. As nossas reviews da série já apresentam uma cobertura completa da temporada. Analisamos cada episódio em suas minúcias – confira todas elas aqui. Esses Editoriais sempre foram uma casa para certa excentricidade, e não seria diferente hoje. Afinal, não teria a menor graça olhar para um panorama das últimas temporadas. Mesmo com seus altos e baixos, é inquestionável que a série apresentou capítulos muito bons nesta sétima temporada – mas que deixaram algumas dúvidas.
Depois da cena fatídica do penúltimo episódio da temporada – vou deixar sem o máximo de spoilers possível. Mas fique avisado: spoilers a frente! –, uma das questões mais abrangentes tem sido os limites dos poderes do Rei da Noite e a transformação do dragão de gelo. E essa não é a única.
Antes de qualquer coisa…
Para entender o texto desse artigo, tenha em mente o termo “Suspensão de descrença”. A suspensão de descrédito, da incredulidade, ou ainda “suspensão voluntária da descrença” refere-se à vontade de um leitor ou espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou contraditórias.
Tendo isso, vamos aos fatos!
Viagem rápida
O fast travel que chega a ser tão agressivo que deixa muitos jogos constrangidos (estou falando com você, Black Desert Online). A quebra na linearidade do tempo narrativo, a descaracterização do uso da magia… Isso para não mencionar como o roteiro “favoreceu” certas sequências. Como um todo, a sétima temporada fez uso de um recurso que não tinha estado tão presente na trama desde que Daenerys conseguiu dar vida a seus dragões: a suspensão de descrença.
Entendam, esse não será um texto doutrinador. Não tenho a menor intenção nem obrigação com verdades. E como fez Coleridge ao cunhar o termo, peço apenas do leitor que me empreste a sua atenção. Além disso, suspenda a sua razão e credulidade, e me permita dizer alguns absurdos. E claro, atribuam a eles alguma atenção.
Talvez o recurso mais comum quando tomamos qualquer obra de ficção, a suspensão de descrença. Essa vontade absurda de olhar para o outro lado… Além disso, de deixar passar aquela coisa absurda na trama, de simplesmente “pular” aquela conveniência. Bem como, deixar que o todo da trama compense esses momentos de puro nonsense. Ela funciona numa via de mão dupla: poupando o espectador do rage (que deve ser reservado para outras coisas) e permitindo que o enredo rompa com sua própria lógica em benefício próprio.
Pouco ou nenhum sentido!
Claro, todo esse papo teórico faz pouco ou nenhum sentido. Por isso, vamos aplicar isso ao que temos. Mesmo tendo sido muito usada desde a finale da primeira temporada, a magia sempre foi um recurso usado. E claro, de maneira consideravelmente subjetiva. Tenha você lido os livros ou não, o roteiro sempre usou esse recurso de forma moderada. Sendo assim, escalonando aquilo que a magia pode contemplar. Se você acompanhou discussões de qualquer natureza até aqui, sabe que o nascimento dos dragões trouxe mais intensidade/força para a magia.
O elemento já existia, mas mesmo os mais “atunados” sacerdotes vermelhos não tinham tanto poder – poder para criar sombras e ressuscitar os mortos – antes de, num “ritual” a sua própria forma, Daenerys trazer os dragões de volta ao mundo. Contudo, por mais forte que a magia seja atualmente (trace o paralelo entre o crescimento dos dragões e esse aumento por sua conta e risco) e, por mais poderoso que ele seja, ainda é absurdo que Bran possa wargar simultaneamente tantos corvos. Mas eis que entra a suspensão de descrença e nos resolve: “ele é o Corvo de Três Olhos, ele pode”.
Game of Thrones pode tudo?
O que nos leva ao próximo ponto. Com ou sem treinamento, vimos o jovem Bran lutar por temporadas. Anos para conseguir controlar bem suas habilidades básicas como warg. Ao encontrar os Filhos da Floresta e finalmente conhecer seu futuro – e ter seu treinamento interrompido antes de realmente aprender alguma coisa –, ele foge do Rei da Noite para se tornar um voyeur que faz comentários inapropriados… Sobre o que aconteceu com Sansa e que, subitamente, tem o controle sobre todos aqueles corvos bonitinhos. Outra vez, temos a suspensão de descrença se repetindo e deixamos isso passar também.
E já que falamos de wargar, a pergunta mais feita foi: Se o Rei da Noite simplesmente converteu o Viseryon em mais um dos membros de seu exército – como ele fez com incontáveis crianças –, ou ele também tem poderes de wargar, similares aos de Bran? Mais ainda, quais são os limites dos poderes dele? É aqui que a suspensão de descrença realmente brilha, num dos melhores usos dela no roteiro da série e dos livros.
Mistérios…
Game of Thrones sempre jogou com o que sabemos. Sempre nos induziu uma segurança quanto ao que conhecemos da trama. Tudo isso, para poder desconstruir exatamente em cima disso. E essa distinção, entre a sutileza do uso e a sua conveniência, é o centro de toda essa traquinagem. Quando nos debruçamos sobre os white walkers, sabemos muito pouco… Na verdade, sabemos quase nada sobre os poderes deles. Sabemos que o Rei da Noite e seu séquito provavelmente são os “originais”, criados pelos Filhos da Floresta, e que a “praga” dos Caminhantes se espalhou. Mas como isso aconteceu? Quando confrontados com isso, a suspensão de descrença entra, com maestria, e nos tira o peso que é não saber.
Contudo, a suspensão de descrença é, em si, uma aposta arriscada. Porque quando ela funciona, até os mais ácidos críticos – este que vos escreve incluso – são forçados a admitir o brilhantismo da coisa. Passei dias aplaudindo a genialidade de toda a sequência final de “Beyond the Wall” por nos fazer questionar. Por nos fazer criticar. Por nos fazer recorrer a suspensão de descrença.
Mas quando somos forçados desconsiderar certas sequências simplesmente para apreciar o resto… Quando temos que dizer, “ah, os eventos não estão acontecendo simultaneamente, não é fast travel, é só o corte” para poder justificar as idas e vindas de Varys, Tyrion e até mesmo de Daenerys, a coesão do roteiro diminui. E tanto a trama quanto o espectador perdem.
É tudo uma questão de interpretação
No fim, o que conta é como você interpreta o todo. A suspensão de descrença pode, e muito, dentro de qualquer série. Não só em Game of Thrones, mas em qualquer produção. A linha tênue do que se está disposto a aceitar é sempre o centro do que a produção pode fazer. Claro, somada a suspensão de descrença.
Quando bem aplicada, a suspensão de descrença previne a necessidade de fillers. Além disso, dá ao espectador a chance de colocar suas próprias conclusões, sua própria interpretação, à prova frente ao universo de possibilidades do enredo. Então, até pode ser importante descrer… desde que isso seja um recurso, uma exceção, um vidro para quebrar em caso de emergência, não algo que esteja em todo episódio.
Só resta saber: nós vamos aceitar isso no final da série? Teremos de esperar…
Além disso, completo. Todavia, palavras.