Crítica: O Escolhido, série brasileira da Netflix, acerta o tom com trama envolvente
Crítica da primeira temporada de O Escolhido, nova série brasileira da Netflix.
Série da Netflix, O Escolhido, é uma aposta da plataforma bem produzida
O Escolhido é a mais nova aposta brasileira da Netflix. E se isso fosse um jogo de poker, certamente a série se enquadraria em um Royal Flush – ou seja, a melhor mão que poderia ser entregue na mesa.
A série, por si só, já começa como um desafio, ao ser uma adaptação da trama mexicana Niño Santo. Criada por Mauricio Katz e Pedro Peirano, a história foi originalmente concebida para uma produção exibida no México em 2011. Portanto, era preciso uma atualização mesclada com realces brasileiros para que a trama entregasse ao espectador da Netflix algo original, com a cara do Brasil e – sobretudo – com qualidade. Podemos dizer aqui, que a missão dada foi cumprida.
Com seis episódios, O Escolhido conta a história do vilarejo Águazul. Escondido entre as águas perigosas do complexo do Pantanal, tal lugar é envolto de mistérios. E é lá que o mundo de três jovens médicos se choca com o sobrenatural. Lucia (Paloma Bernardi), Damião (Pedro Caetano) e Enzo (Gutto Szuster) chegam ao lugar com o intuito de vacinarem os habitantes da comunidade contra uma mutação do vírus da Zika. Mas eles nem imaginavam que dariam de cara com práticas questionáveis pela sociedade. Estas lideradas por uma espécie de curandeiro – O Escolhido (Renan Tenca).
Como uma seita, todos os moradores de Águazul acreditam fielmente na palavra do tal Escolhido. E suas práticas tem uma forte defesa nos atos dos fiéis, como Mateus (Mariano Martins), Zumira (Tuna Dwek), entre outros. Visto por eles como um local que não adoece, graças à manutenção da fé pelo Escolhido, o pequeno lugar passa por uma agitação quando Lucia, Damião e Enzo tentam vaciná-los. E aí começa um embate entre a ciência e a fé, rodeado de mistérios sobrenaturais.
Produção caprichada
A temporada de O Escolhido é caprichada em muitos sentidos. O roteiro construído de forma belíssima pelas mãos de Raphael Draccon e Carolina Munhóz é extremamente rico. O primeiro episódio, por exemplo, cumpre a função de apresentar a trama, bem como seus personagens. E indo além, ela instiga o espectador a assistir mais. Para se ter uma ideia, o próprio Escolhido que dá nome à série nem aparece propriamente em tal capítulo, mas sua essência é tão bem apresentada nos diálogos que é como ele se fizesse presente através dos mistérios que circundam sua origem.
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Além disso, vale destacar que a série caprichou na ambientação, trazendo fortes características de locais desconhecidos por muitos no Brasil. Gravada na cidade de Natividade, no Tocantins, O Escolhido carrega uma fotografia bem particular. Destaca paredes corroídas pelo tempo, que carregam dores e sofrimentos de uma época escravocrata, mas conservadas pela memória e cultura folclórica local. Falando em folclore, por sinal, a série usa e abusa de histórias que são contadas na vida real, sendo mais um acerto da trama.
Claro, tudo isso não seria suficiente para prender um espectador que consome produtos tecnológicos, como a cultura do entretenimento por streaming. Sabendo utilizar muito bem tais tramas e locações a seu favor, O Escolhido torna-se um trunfo para a Netflix se firmar ainda mais na produção de conteúdo nacional. É uma espécie de valorização que o Brasil ainda precisa ter, e que sofre um grande impulso com essa série.
Protagonismo feminino
No quesito atuação, há um forte abismo entre Paloma Bernardi e todo o resto do elenco. A atriz toma a personagem para si, de modo que fica praticamente impossível notar seus outros companheiros enquanto ela está em cena. A atriz, que tem uma carreira consolidada na televisão, soube passar para Lucia a carga necessária para que o público se identifique com sua personagem.
A médica tem sua história contada logo no primeiro episódio. E, através de flashbacks, entendemos que ela vem de uma família extremamente religiosa. Isso, em certo ponto, lhe fez questionar sobre o que acreditar: na fé ou na ciência. Tal motivo levou Lucia a ser uma médica determinada, e isso torna-se uma característica importante. Não só para a figura da personagem, como também para a trama em geral. Ter alguém com quem se identificar, ou comprar sua história, é talvez o ingrediente principal para que o público retorne para mais episódios. Portanto, Lúcia pode ser classificada como a personagem desta função.
Bem como ela é a persona que lidera a equipe, mostrando que é necessário dar destaque para um protagonismo feminino. Em um elenco majoritariamente masculino, Bernardi assume a dianteira e prova que cada vez mais a mulher vem ganhando um espaço conquistado por muita luta.
Os médicos de O Escolhido
Os protagonistas masculinos, entretanto, não ficam para trás. Eles conseguem seus momentos de destaque, principalmente quando têm oportunidades para brilharem nos episódios focados em seus respectivos personagens.
Gutto Szuster, por exemplo, se destaca no capítulo em que seu personagem Enzo decide sair da aba do pai. Rico, formado em medicina, ele toma como sentido da vida mostrar-se relevante para a sociedade de alguma forma. E num dilema entre provar-se para si, para a família e para o mundo, Szuster tem oportunidade de mostrar um trabalho envolvente, com um personagem facilmente adorado pelo espectador.
Já Pedro Caetano não esconde a marra de um verdadeiro carioca. E apesar de alguns momentos mais tranquilos da trama ele parecer um pouquinho fora do tom, é nas cenas de ação e raiva que o ator mostra todo o seu potencial. Seu personagem Damião, inclusive, carrega um dos passados mais interessantes da série. Ele vem da favela e de uma família que precisa conviver diariamente com o tráfico. Portanto, Damião torna-se uma referência ao mostrar as dificuldades que um negro e pobre precisa enfrentar para vencer na vida. Algo determinante, que reflete na realidade de muitos brasileiros. Todavia, ele “vence na vida” – apesar de ainda enfrentar dilemas e preconceitos no seu dia a dia.
Já no lado do vilarejo, sem dúvidas, o mérito fica todo para Renan Tenca, que domina a tela desde o primeiro momento que entra em cena como o líder do movimento. Com certeza, ele carrega um dos mais instigantes personagens da série e faz parte da composição que mantém o público curioso para o desdobrar dos acontecimentos.
Só acreditamos naquilo que vemos…
A série promove um interessante debate sobre aquilo que acreditamos ou não. Ter o embate entre a fé e a ciência reflete, ainda, o duelo que por gerações tenta encontrar um equilíbrio. A figura do Escolhido é questionada pelos médicos, até o ponto em que eles precisam passar pela provação. E é a partir da presença do sobrenatural que eles passam a se questionar sobre o que é possível acreditar ou não.
Embalados pelos flashbacks que contam a história de cada um dos personagens, O Escolhido cumpre seu propósito, tendo uma narrativa bem redondinha. Não há histórias soltas ou personagens desconexos. Todos eles, incluindo os menores como Angelina (Alli Willow), ou Zulmira (Tuna Dwek), estão ali com um propósito (interessante, por sinal).
O Escolhido preenche o pacote perfeito que uma série precisa ter: boas histórias, elenco afiado e – principalmente – apelo com o público. A série proporciona uma experiência única ao espectador, com uma carga dramática interessante e envolvente. E a sensação de dever cumprido, ao final, não esconde a necessidade (ou mesmo vontade) de contar mais histórias em um segundo ano. Além disso, já podemos encabeçar a campanha para mais episódios?
Enfim, a Netflix necessitava de mais histórias bem construídas e executadas, e é um grande orgulho encontrar tal acerto vindo diretamente do Brasil. Portanto, Bendito seja o Escolhido. E que a trama venha para ficar…
Todos os episódios estarão disponíveis na Netflix nesta sexta (26).