Crítica: 3ª temporada de Jessica Jones constrói um excelente final para sua narrativa
Crítica da terceira e última temporada de Marvel's Jessica Jones, da Netflix.
Todas as coisas chegam ao fim
A terceira e última temporada de Jessica Jones finalmente chegou até nós. E, com ela, se encerra a parceria Marvel-Netflix, que nos permitiu ver excelentes – mas também péssimos – grandes momentos. Tendo começado com um Demolidor que quase nunca saiu de um alto nível e culminando em Defensores que não foram tão bons assim, o saldo da parceria Marvel-Netflix é sim positivo, e mais: singular.
Contudo, essa crítica vem permeando a maneira como que essa conclusão foi feita. Depois de uma série de cancelamentos merecidos, mas abruptos, desaguamos nessa temporada de Jessica Jones já dada “como morta”. Entretanto, seu cancelamento ter sido anunciado antes da estreia deu um tom demasiado apressado as coisas. Além disso, fator que acresce ao peso e a “acidez” dos críticos.
O peso das críticas
Jessica Jones sofreu desse peso em suas temporadas anteriores, especialmente no que toca ao ritmo. “Chatíssima” e “arrastada” foram alguns dos rótulos atribuídos as primeiras temporadas. Até certo ponto injustamente. Certo, não podemos negar que treze episódios é decididamente demais, não só para esse caso, mas para qualquer série. Mas é inegável que a recepção de algo que já é lançado cancelado é (negativamente) parcial.
Apesar disso, Melissa Rosenberg conseguiu repetir o seu feito das temporadas anteriores. Mesmo que em alguns pontos o pacing, ou o ritmo da narrativa tenham sido um tanto questionáveis ao longo desses três anos – de novo, pelo número de episódios por temporada – nos entregar um conflito de moralidade.
Esse sempre foi, no cerne, um dos fatores definidores da série. É o gosto agridoce, é o desconforto da falta ou do excesso de limites. Da apatia existencial, do não se importar. Afinal, nós encontramos Jessica quando já pesa sobre ela todo o trauma familiar (em dose dupla se considerarmos Dorothy Walker). E, também, o peso da violência e violação das ações de Kilgrave. Mesmo assim, nós conhecemos uma Jessica que já faz as próprias escolhas, que julga, pesa e age de acordo com o que aconteceu. Entretanto, de acordo com suas próprias escolhas.
Vemos muito bem isso, por exemplo, nas ações de Hogarth, em sua guerra para manter a cabeça acima da água, que cria um antagonismo – que se concretiza sem a influência dela – com os super.
O conflito interno que a própria Jessica cria para si mesmo
Fadada a tentar seguir as aspirações de heroísmo colocadas pela mãe e a lidar com as enormes dificuldades que vem quando você decide se importar com as pessoas, ela primeiro rechaça Trish – com todos os motivos do mundo –, depois decide se conciliar com ela para transformá-la em uma “arma” – repentinamente esquecendo todos os problemas que a simples existência de Trish já causam – par se ver na situação mais cruel de todas: fazer o que é agradável ou fazer o que é certo, lidando com o preço dessas ações.
De primeiro momento, rever a personagem, proporciona prazeres. Assim como sentir um pouco da atmosfera, se reencontrar com a maravilhosa fotografia e trilha sonora. Foi ousado da série gastar tempo de cena para fazer algo que a própria série já havia escolhido “pular” desde o início: o conflito entre a personalidade de Jessica e a possibilidade de heroísmo que vem com as habilidades dela. “Certo” e “errado” sempre foram conceitos absurdamente cinza na percepção mostrada pela série.
Trish “Patsy”/“Hellcat” Walker e os problemas da adaptação
É muito difícil ser objetivo para falar de Trish. Não só porque ela é uma personagem que eu, particularmente, detesto, mas principalmente porque a construção dela nessa temporada foi coesa, mas muito indigesta. E isso se deve, principalmente, pela personagem não se conectar em níveis reais com ninguém da audiência.
Obviamente, como a temporada claramente foi planejada como final, todas as pontas soltas supostamente devem ser tratadas. Mesmo assim, o meu desgosto pessoal, total e completo pela personagem da Trish faz com que grande parte das cenas iniciais dela tenham sido difíceis de tolerar. A obsessão inicial dela com heroísmo e “redenção” iguala-se em nível de irritabilidade ao que vimos com Foggy em Demolidor. A obsessão do Foggy com o Murdock é parte do que deixou a temporada final da série mais difícil de digerir. Bem como, ver o fenômeno dos sidekicks ruins se repetir aqui pesa negativamente para a série.
Vale dizer ainda que, no geral, essa troca da melhor amiga da Jessica – que nos quadrinhos é a Carol Danvers (a.k.a Capitã Marvel) – pela Trish é compreensível estruturalmente, mas se provou terrível quando contrastado ao todo. Em compensação, Dorothy Walker serviu tanto como alívio cômico quanto como um analgésico para as aparições de Trish. Rebecca De Mornay certamente se superou, sendo sua morte – uma “baixa” oriunda da guerra com Salinger – um final perfeito para a personagem, abrindo caminho para o que se seguiu. Para além do alívio cômico, o grande confronto entre elas quando os poderes de Trish são revelados foi singular.
Personagem evoluiu
A “evolução” – se é que podemos dizer isso – de Trish como Hellcat não pode passar em branco. Os traços mais… irritantes dela foram amplificados com o processo, mas é a responsabilidade de Jessica nisso tudo que não pode ser eximida. Desde o momento em que ela se convence de Trish seria uma “arma secreta”, é sinalizado que ela se tornaria algo mais incontrolável, algo que é apoiado pelas outras evidências. Mas confesso que o extremo que ela atingiu foi surpreendente.
O Potencial do Mundano e o preço da vida real: Hogarth, Malcolm e Costa
A introdução de Gillian e a manutenção de Costa – e até mesmo a curta aparição de Vido – como ligações da personagem com a realidade mundana. Vemos esses personagens serem mais do que pequenas vírgulas: eles transitam pela jornada de Jessica ativamente fazendo parte da narrativa.
Malcolm, por exemplo, atinge seu auge do lado sombrio somente para finalmente ter aquilo que é preciso para admitir que essa pessoa emulada, movida pelo ódio, não é quem ele realmente é.
E ainda no tópico de fazer parte direta da narrativa, não podemos esquecer a atuação titânica de Carrie-Anne Moss. Seja lidando com a doença ou no flerte com a ex, Hogarth sempre foi um elemento forte da trama. E os momentos entre ela e Jessica são simplesmente espetaculares de se ver. O cinismo, a crueza, a franqueza de duas pessoas que conhecem o pior uma da outra e se respeitam no meio termo do ódio mútuo é algo difícil de emular. Além disso, nesse caso, é algo que é feito com perfeição. Até mesmo quando ela cria e descria suas próprias ameaças “hiper-reais” para tentar assegurar que seu legado seja eterno é tudo tão mais… “intenso”. Sim, chega a ser difícil descrever. Sentirei muita falta dela.
“Assholes need saving too. From bigger assholes.”
Talvez a cartada mais ousada da temporada, e onde ela conseguiu entregar acima das expectativas, foram as referências ao universo dos quadrinhos da Marvel. Erik Gelden e Gregory Salinger receberam nova luz e novo tratamento – alterando as cores da paleta, mas sem perder o charme noir – para a temporada e convenceram, mesmo com algumas ressalvas.
Tomemos Erik Gelden, conhecido como Mind-Wave, como exemplo. Ele foi um acréscimo sutil à trama da temporada. Considerando o contraste com tudo o que aconteceu, o arco de antagonismo de Trish e, claro, esse toque de Kilgrave no final, ter um personagem que possui poderes psíquicos serve muito bem. É uma pena que não veremos mais desenrolares, dado o fim da parceria. Afinal, Mind-Wave é um vilão nos quadrinhos – que é derrotado pelo Demolidor. Poderia render uma nova trama interessante. Ele também serviu, como cada vilão a sua forma fez até aqui – passando pelo Kilgrave, pela mãe, pelo Foolkiller –, como um contraste de moralidade para Jessica.
Já Gregory Salinger, que é um dos quatro personagens dos quadrinhos a assumir o manto do Foolkiller, entrega até demais. Todo o jogo psicológico entre ele e Jessica deram a trama a profundidade que faz da série um favorito pessoal. Afinal, além de ser um personagem impactante, vemos as partes do icônico discurso do vilão que foram mostradas no trailer. Tudo isso, surgindo de acordo com o crescente de raiva dele. E também, da conversa com Erik até os seus instantes finais. Vale notar também que esse mercenário/vilão já foi associado até mesmo do Deadpool nos quadrinhos, algo que certamente renderia, caso essa parceria Marvel-Netflix não tivesse acabado.
De toda forma, esses personagens são diretamente contrastados com Hogarth, Trish, Malcolm, Costa e até mesmo com a própria Jessica, reforçando o argumento da moralidade que centraliza a série.
Um veredito
A questão da vulnerabilidade repentina que vem e vai de Jessica é um ponto negativo. Mesmo quem não acompanhou outros capítulos dessa ou das outras séries consegue supor que ela é razoavelmente resistente. E, de uma hora para outra, uma facada é suficiente para colocá-la temporariamente fora de ação e fragilizar o físico. Isso, diga-se de passagem, é algo um tanto destoante com o contexto dos poderes da personagem. Especialmente porque depois, ela parece completamente de volta ao seu normal.
Claro, a temporada tenta construir um paralelo com a fragilidade recorrente a qual a personagem é submetida. Foi assim antes, com Kilgrave, foi assim com a mãe. De toda forma, vemos que todo o poder, todas as habilidades que ela tem não a impedem de ser vulnerável. O resultado é um sabor agridoce. Principalmente porque vemos mais esse conflito se depositar na psiquê de uma personagem que já é bem problemática.
No quesito vilões, ainda vale apontar sobre Salinger. Ele também é construído como uma metáfora da masculinidade tóxica e frágil dos dias atuais. Assim, buscando reverter situações, atribuir-se superioridade a partir de alegada inferioridade ou falta de merecimento dos outros. Chega ao ponto extremo de se intitular uma “vítima” de uma “feminista vingadora”, uma crítica ferrenha do texto da série a esse tipo de mindset.
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Ainda nesse tópico, Hitchcock disse certa vez que “estilo é plagiar a si mesmo”. Contudo, nesse caso, vemos Jessica e Trish confrontarem uma a outra como dois extremos de uma mesma moeda muito distorcida. E, mesmo assim, isso não gera metade da empatia que tivemos com Kilgrave ou com Alisa. Talvez o meu desgosto pessoal pela personagem deva ser levado em conta. Entretanto, falta a Trish qualquer apelo que se conecte conosco.
Do departamento de referências, não podia passar em branco o ressurgimento de Luke Cage e Kilgrave. Este último, aliás, feito de maneira magistral nas pequenas coisas. Aqui, ressalto desde a cor do tema do celular de Jessica até a narração propriamente dita. Todos, pequenos easter eggs para ajustar a “bússola moral” da narrativa.
Nos despedimos…
E é ao som de “Keep on Livin”, do Le Tigre, que Jessica Jones chega a conclusão do seu arco. Não posso nem vou dizer ao final, porque embora a narrativa da personagem tenha sim sido encerrada junto com o capítulo Marvel-Netflix, Melissa Rosenberg se assegurou de deixar a personagem viva e pronta para um futuro. Krysten Ritter não só foi excelente no papel. Sua sua atuação é uma das partes principais do que vendeu a série para mim, como expectador.
O in memoriam para Stan Lee no final foi a perfeita maneira de encerrar a série, bem como a parceria. Das produções Marvel-Netflix, Jessica Jones sempre foi a minha favorita. Dessa forma, é maravilhoso ver um final com cara e gosto de final serem entregues a uma personagem tão bem construída. Mas se há realmente um conceito – depois de tantas palavras – que pode encerrar essa maravilhosa traquinagem que foi dividir minhas reflexões da série com vocês ao longo desses três anos é algo que a própria Jessica diz no começo. “Been there, done that, get out!”.