Crítica: Com excelente direção, Chernobyl entrega olhar controverso sobre incidente histórico
Crítica da minissérie Chernobyl, da HBO.
“Qual o preço das mentiras?”
Chernobyl veio para ficar. Além disso, para reafirmar uma tendência importante no entretenimento. Frequentemente, a TV e o cinema se aventuram na abordagem de temas e/ou personagens históricos polêmicos, criando narrativas ficcionais e documentais, com o objetivo de marcar posição. Certamente, o exemplo recente da série Genius, do NatGeo, tem mostrado como é possível produzir um bom material audiovisual e discutir fenômenos importantes.
De modo similar, a mais nova minissérie da HBO, explorou o polêmico e controverso incidente ocorrido em 1986 na União Soviética. Primeiramente, é preciso destacar a qualidade da produção e a relevância em abordar um evento tão importante quanto o incidente de Chernobyl. Com atuações impecáveis e efeitos visuais de alta qualidade, Chernobyl é, decerto, uma das melhores produções recentes na TV.
Entretanto, não compartilho da mesma euforia de outras pessoas quanto à trama. Tanto por sua qualidade técnica, quanto pela abordagem histórica. Anteriormente, uma matéria do Mix detalhou mais sobre o que ocorreu em Chernobyl. A meu ver, o problema da série é narrativo, não factual.
A União Soviética vista por dentro
Um dos grandes méritos e, ao mesmo tempo, problemas da série é o esforço em ambientar bem sua trama. Poucas produções anglo-americanas se preocupam em mostrar a vastidão da União Soviética. Do contrário, Chernobyl faz questão de explorar o gigante país além de Moscou. Dessa forma, traz a Ucrânia, a Bielorrússia e outras partes do território.
Não apenas essa apresentação ajuda a compreender a dimensão do problema, como também compõe a narrativa. É pela distância entre as regiões, somada à passagem do tempo, que temos uma percepção das proporções do incidente.
Problemas se destacam
Os problemas de ambientação, todavia, também são relevantes. De cara, o fato de a produção ser em língua inglesa já subtrai grande parte do clima de imersão. E não se trata apenas de não ser a língua do país, mas também da forma como ela se apresenta. Ouvir ditados russos ou lemas do partido comunista soviético em inglês soa, em muitos momentos, como quase um deboche da série.
Isso, por sinal, é o grande problema da ambientação. Por diversos momentos, o roteiro força a mão para colocar os Estados Unidos como uma solução possível, mas negada pelos soviéticos devido à Guerra Fria. A ideia de que a União Soviética é uma nação paranoica em não mostrar fraqueza contraria a disciplina que a série tenta usar para mostrar como funcionava a burocracia de Estado.
Não obstante, essa dicotomia é historicamente rasa. Apesar de, evidentemente, a Guerra Fria ter sido um confronto ideologicamente marcado pela negação um do outro, houve momentos em que as duas superpotências trabalharam juntas, sendo mais famoso o caso da vacina para varíola.
Sobretudo, uma imagem recorrente no último episódio ressalta essa mão pesada da produção. Um Mickey insiste em aparecer em cena, justo no momento em que todo o teatro das mentiras é desvelado em julgamento (bem típico de filmes americanos, por sinal).
Atuações de altíssimo nível
Bem como a qualidade da produção foi elevada, a atuação do elenco é digna de nota. Principalmente, os três protagonistas, Legasov (Jared Harris), Boris (Stellan Skarsgard) e Khomyuk (Emily Watson) entregam uma sintonia excelente.
Stellan Skarsgard, como esperado, é o ponto alto entre as atuações. Seu Boris Schcerbina transita muito bem entre um simples burocrata do partido comunista a um personagem de peso, desafiando a estrutura do Estado. A evolução do personagem acompanha bem o ritmo da trama, como também mantém ótima sintonia em sua relação com Legasov.
Este, por sua vez, incorpora o papel do cientista obstinado pela verdade. Seu discurso no julgamento, bem como seus posicionamentos nas reuniões do comitê do partido comunista demarcaram um contraste entre a política, interessada na manutenção do poder e das aparências, e a ciência, preocupada com o bem-estar da população.
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A atuação de Jared Harris é excelente. O ator consegue transitar entre uma pessoa com amplo conhecimento técnico a alguém que está sentenciado à morte como todos os demais de forma natural. Novamente, vale destacar a interação com o personagem de Skarsgard. Entretanto, a idealização da ciência pelo roteiro cria situações poucos verossímeis, como o confronto entre Legasov e chefe máximo da União Soviética, Gorbachev.
Outros personagens também roubam a cena…
Em paralelo, a personagem de Emily Watson também veste a roupa da cientista virtuosa. Mas, no caso, representa toda a comunidade científica. Ao final da série, um texto explica que a personagem representa todos os cientistas que trabalharam com Legasov, uma forma de homenagem a todos. Porém, o que serve de préstimo a quem viveu acaba por criar situações estranhas de roteiro.
Khomyuk, por vezes, simplesmente aparece nos lugares, com acesso a pessoas e informações que deveriam ser muito restritas. Até há um embaraço com a KGB, mas a explicação de como ela consegue estar em vários lugares em intervalos curtos de tempo parece recair nessa representação de várias pessoas em uma.
Direção impactante
Na crítica do primeiro episódio, já havia destacado a qualidade da direção de Johan Renck e sua equipe. Ao longo da minissérie, seu trabalho só cresceu e se tornou, certamente, a melhor coisa de toda a produção.
Primeiramente, é preciso destacar o uso bem feito das câmeras, alternando entre cenas claustrofóbicas no ambiente da usina e planos abertos para mostrar regiões desertas afetadas pela radiação. Nas cenas mais fechadas, sentimos a angústia de estar num lugar radioativo e letal. Nas abertas, em contraste, temos a sensação de vazio causada pelo incidente na região.
Similarmente, escolhas de trilha incidental foram perfeitas. Utilizar o som do dosímetro de radiação como trilha para momentos de tensão foi de grande felicidade, dando um clima perfeito para cenas na usina.
A montagem das cenas também foi muito correta. À exceção de uma história paralela de uma moradora de Prypiat e seu marido, um bombeiro que esteve na usina na noite da explosão, a sequência das cenas é coerente, e mantém o interesse na história de forma constante.
As cenas de computação gráfica são decentes, a maioria convencendo bem. Nas cenas da usina, principalmente as abertas, a direção combina bem efeitos práticos, gráficos e um jogo de câmeras que impõe tensão à narrativa.
Mas, afinal, qual o preço das mentiras?
Finalmente, Chernobyl traz consigo uma discussão importante no contexto atual de negacionismo da ciência e perpetuação da pós-verdade. E isso, principalmente, na política. O problema, a meu ver, é a simplificação do debate e a ausência de alguns pontos.
Evidentemente, a trama envolvendo o incidente na usina teve em sua origem interesses pessoais e políticos. Claro, além de ser resultado de uma estrutura política complicada existente no regime soviético. A maquiagem da política e dos interesses econômicos sobre fatos sociais é um problema recorrente na história, como pudemos ver recentemente no incidente de Brumadinho, no Brasil.
A mensagem de que é necessário ouvir os cientistas, especialistas treinados, tem sim um valor importante para nosso tempos. Não devemos acreditar em qualquer sandice que apareça pela internet. Bem como, nem achar que cientistas são vagabundos que realizam balbúrdias. A ciência tem seu valor e é útil à vida cotidiana.
Porém, também não podemos cair na simplificação da série de colocar a ciência como um saber inquestionável e separado da política. O que a série mostra, enquanto tenta negar no discurso, é exatamente como toda esfera da vida é política, inclusive a ciência. Não se produz ciência num universo paralelo, e sim, permeado pelos valores e interesses de uma época.
Além disso, o que a série também mostra, enquanto nega no discurso, é a própria limitação da ciência. Apesar de ter havido erros de conduta dos envolvidos, houve também uma parcela relacionada ao que se sabia sobre o funcionamento das usinas, das partículas e seus efeitos sobre o corpo e o ambiente.
Veredito final
Lembrar que as mentiras custam caro é fundamental, mas também é preciso compreender os limites de explicação de uma verdade.
Com uma produção excelente em termos técnicos, atuações impecáveis, e um ótimo ritmo, Chernobyl entrega uma versão muito boa sobre o incidente radioativo mais famoso da história, e alimenta novamente as contradições entre a hegemonia estadunidense e o passado do socialismo soviético. A Guerra Fria nunca acabou.